segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Chove. Há silêncio...

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que nem é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos sente.
Chove. Nada em mim sente...

Fernando Pessoa - Cancioneiro

domingo, 27 de dezembro de 2009

Eu...

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de néve tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que alguém sonhou.
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!

Florbela Espanca - A Mensageira Das Violetas

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Chove

E como não falar da chuva
Se me alegra e me acalma
A pele e a alma?

E como não falar da chuva
Se a musa eleita
É a canção mais perfeita?

E como não falar da chuva
Se o céu negro me encanta
E minhas tristezas espanta?

E como não falar da chuva
Se mesmo ao cessar
Fica um gosto de mar?

Sil

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Do "Livro do Desassossego" - Fragmento 3

Senti-me inquieto já. De repente, o silêncio deixara de respirar.

Súbito, de aço, um dia infinito estilhaçou-se. Agachei-me, animal, sobre a mesa, com as mãos garras inúteis sobre a tábua lisa. Uma luz sem alma entrara nos recantos e nas almas, e um som de montanha próxima desabara do alto, rasgando num grito sedas do abismo. Meu coração parou. Bateu-me a garganta. A minha consciência viu só um borrão de tinta num papel.

Bernardo Soares - Heterônimo de Fernando Pessoa

domingo, 20 de dezembro de 2009

É o que me interessa

Daqui desse momento
Do meu olhar pra fora
O mundo é só miragem
A sombra do futuro
A sobra do passado
Assombram a paisagem

Quem vai virar o jogo
E transformar a perda
Em nossa recompensa
Quando eu olhar pro lado
Eu quero estar cercado
Só de quem me interessa

Às vezes é um instante
A tarde faz silêncio
O vento sopra a meu favor
Às vezes eu pressinto
E é como uma saudade
De um tempo que ainda não passou

Me traz o seu sossego
Atrasa o meu relógio
Acalma a minha pressa
Me dá sua palavra
Sussurra em meu ouvido
Só o que me interessa

A lógica do vento
O caos do pensamento
A paz na solidão
A órbita do tempo
A pausa do retrato
A voz da intuição

A curva do universo
A fórmula do acaso
O alcance da promessa
O salto do desejo
O agora e o infinito
Só o que me interessa

Lenine


terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Via Láctea - Fragmento

XIII

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com ela? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entende-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."

Olavo Bilac

domingo, 13 de dezembro de 2009

Através da janela

Uma chuva tímida insiste em cair,
fininha disfarçada de neblina.
Doce presença para acompanhar meus pensamentos.
É a primavera com cheiro de outono...
13:30 hs
Sil

sábado, 12 de dezembro de 2009

Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinicius de Moraes - Do Livro Antologia Poética

sábado, 5 de dezembro de 2009

Sem remédio

Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.

E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos da Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!

Florbela Espanca - Livro de Mágoas

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Sonho. Não sei quem sou.

Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.

Fernando Pessoa - Cancioneiro

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Incerteza

Como espelho que se quebra inteiro
Deparo-me com a fragilidade já desconhecida
Subjetivando meus cacos...
Escuto e não sei quem és
Qual é a bossa desse amor?
Amor que me bebeu inteira
Que fez de mim versos teus
Onde te perdi de vista?
Tal qual areia do deserto...

Quantas partidas
Tantos encontros
Reencontros
Quero
Mas já não sei se quero
O eco das palavras repetidas me incomoda
Retóricas que me atordoam
Até a calma que me parece absoluta
Queima minha alma

Como mercúrio que se tenta segurar
É o que somos
Onde me perdi de vista?
Me afasto
E outra vez trago-te a realidade
Agora me alegra o ar... chove

Sil