sábado, 14 de novembro de 2009

Do "Livro do Desassossego" - Fragmento 2

Há dias em que cada pessoa que encontro, e, ainda mais, as pessoas habituais do meu convívio forçado e quotidiano, assumem aspectos de símbolos, e, ou isolados ou ligando-se, formam uma escrita profética ou oculta, descritiva em sombras da minha vida. O escritório torna-se-me uma página com palavras de gente; a rua é um livro; as palavras trocadas com os usuais, os desabituais que encontro , são dizeres para que me falta o dicionário mas não de todo o entendimento. Falam, exprimem, porém não é de si que falam, nem a si que exprimem; são palavras, disse, e não mostram, deixam transparecer. Mas, na minha visão crepuscular, só vagamente distingo o que essas vidraças súbitas, reveladas na superfície das coisas, admitem do interior que velam e revelam. Entendo sem conhecimento, como um cego a quem falem de cores.

Bernardo Soares - Heterônimo de Fernando Pessoa